Kazuma e Asahi #53


O alarde se dava por uma boa notícia. Algumas luzes estouravam no céu, como uma comemoração que haviam esperado por tanto anos. O fluxo de soldados era intenso, os carros em movimento também. A base estava sendo desmembrada, o pequeno conjunto habitacional que haviam mantido por tanto tempo agora eram restos que seriam guardados. E ao contrário dos homens, a própria euforia estava dentro da cabeça de Kazuma, eles bebiam, na verdade mais deixavam cair a bebida fora de sua boca do que dentro dela, mas já montavam nos carros e seriam levados para as aeronaves, partiriam, só não esperava que fossem tão rápido. Podia imaginar a saudade dos soldados, alguns choravam enquanto batiam continência, queriam suas famílias, a si, queria ver os avós que haviam sido deixados, no entanto, teria de avisar aquele garoto. Não sabia exatamente o que faria em seu rumo, não sabia como retomaria seus votos de igreja, imaginava que naquele momento provavelmente precisaria de direção religiosa. Os homens recolheriam os idosos, as devidas providências seriam​ tomadas por todos, mas aquele lugar não era de fato a região sob a própria proteção, ainda que houvesse sido enviado para dar suporte a ela, outros soldados viriam para toma-los aos cuidados. Aquela altura, por todo o alvoroço imaginava que os hóspedes da igreja podiam imaginar o fim da guerra, imaginava que ele estava esperando por algum posicionamento, pretendia dar a ele, se não tivesse sido abordado pelo general, se não houvesse sido direcionado para outra região, se houvesse tido tempo suficiente para avisa-lo sobre tudo aquilo.




Asahi suspirou, ainda dormia quando ouviu os fogos fora do local, era um estardalhaço que não fazia ideia do porquê. Levantou-se da cama, quase num pulo, afinal, achava que podia ser alguma espécie de bomba, tiros, talvez, ele estivesse sendo atacado. Os pés levaram a si em passos longos até a torre, onde viu a base dele, distante, e enquanto tentava recuperar a respiração, pôde perceber que os fogos, eram somente fogos mesmo. O que estava acontecendo?

- Padre! Disse a enfermeira, subindo em passos rápidos a escada.
- Hana?
- A guerra acabou!
O que? ... Mas como?!
- Os soldados chineses estão recuando, finalmente desocuparam a área, embora não possamos dizer que a vencemos, pelo menos nossos homens estão fora de perigo. Um carro da base está vindo me buscar, e várias outras pessoas já desembarcaram.
- ... Hana, que horas são? Por quanto tempo eu dormi?
- São onze horas da manhã, tudo isso aconteceu de madrugada. 
- ... Kazuma...
O loiro sorriu, observando a base, com um sorriso enorme nos lábios e assentiu a ela, vendo-a fazer uma pequena reverência. 

- Adeus padre, foi um prazer conhecê-lo!
- Adeus, Hana, que Deus te abençoe. 
- Amém, padre!
O sorriso quase rasgava o rosto do menor, estava feliz, que poderia sair daquele inferno, que ele estava a salvo, ah, tanta coisa passou pela própria cabeça, que nem podia descrever. Iria vê-lo, livre, seria livre para ir com ele embora! Mas primeiro, tinha que tomar um banho. No próprio banheiro, quase derrubou os baldes, as esponjas, havia lavado o corpo tão rápido que quase não fora capaz de pensar, tiraria as roupas pretas, vestiria roupas brancas, vestiria algo que não fosse a própria batina, vestiria uma roupa para ele, finalmente. Ao sair, desceu as escadas em passos largos, sendo recepcionado pelos idosos, crianças que apertavam as próprias mãos, festejando, jogando todas as roupas para cima, tudo estava uma bagunça. Ao descer, seguia em direção a porta, quando ela foi aberta. Por um momento, permaneceu imóvel, fitando-a, achou que seria o moreno, mas não fora ele quem vira ali, e sim, o padre que havia cuidado de si desde que era uma criança. As sobrancelhas se uniram, quando por fim fora tomado nos braços dele, num abraço firme.
- Asahi! Graças a Deus, abençoado seja, não acredito que sobreviveu a isso!
O menor ainda estava atônito, não conseguia falar ou expressar qualquer sentimento. Como o sacerdote que era, anteriormente, deveria se manter calmo, agradecer por estar vivo e por poder encontrar aquele homem que havia sido um pai para si, novamente. Mas tudo que sentia era raiva, desgosto, por ter sido deixado ali sozinho, com outro padre que havia tido um destino terrível na mão dos militares.
- Está mudo? O que aconteceu?
- O que aconteceu? Fui deixado pra morrer aqui.
- Asahi, não seja tolo. Iríamos buscá-los, mas tivemos problemas. Deus o protegeu, nem um tijolo dessa igreja está caído.
- É porque não viu a outra torre. Está em pedaços. 
O mais velho observou a si, afastando-se a observar o próprio rosto e puxou a própria camisa, expondo o pulso machucado, porém cicatrizado, os vários cortes que costumava fazer e o viu negativar. 
- Você continua a fazer isso?!
- Nunca mais o fiz. Já tem meses.
- Sabe que isso não é pagar penitência, é só um capricho de alguém que quer sentia alguma dor! Se Deus não deu isso a você, não busque!
- Não busco mais. - Asahi disse a puxar o pulso. - Preciso falar com você.
- Certo, vamos até meu escritório.
- Não é mais seu escritório, agora é um quarto que foi usado pelos idosos, mas se quiser, podemos subir. 
O padre mais velho, observava a si com uma ponta de desgosto, aparentemente, havia se tornado bem diferente do que ele esperava encontrar, não era mais aquele garotinho frágil. Ao seguir para o andar de cima, adentrou com ele o quarto, desocupado agora por todos.
- O que você quer falar, Asahi?
O menor suspirou.
- Não quero mais ser padre.
- O que? Como pode dizer uma coisa dessas? Ainda mais agora que Deus nos deu o fim da guerra e livrou você de ter sofrido algum acidente.
- Pare de citar Deus como razão para tudo isso! Se eu estou a salvo se deve a um homem!
- Um homem...? Fala do general Sakurai?!
- Sim, Kazuma. Ele foi quem me manteve vivo todo esse tempo.
O homem fez um minuto de silêncio.
- O que aconteceu aqui enquanto eu não estava, Asahi?
- Kazuma cuidou de nós. 
- Kazuma cuidou de vocês ou cuidou de você?! 
Ao dizer, o homem segurou o queixo do loiro, erguendo a face dele a observá-la e no pescoço viu pequenas marcas vermelhas, assim como o ombro.
- O que é isso?
- Não é nada!
Num movimento rápido, o rapaz puxou a camisa que o menor usava, arrebentando os botões a expor o tórax, pequeno porém marcado, tinha uma cicatriz de mordida no ombro direito, assim como uma feita por uma bala, no pescoço, tinha manchas avermelhadas e as costas haviam sido marcadas com marcas arroxeadas, principalmente perto dos quadris. 
- ... Você rompeu seus votos de castidade... Com o general?!
Asahi uniu as sobrancelhas ao ouvi-lo, abaixando a cabeça, sentindo os fios loiros cobrirem os olhos. 
- Kazuma cuidou de mim...
Ao falar, sentiu o rosto ser virado de um lado a outro, atingido pelo tapa firme que havia levado sobre o bochecha, num som tão alto que quase havia feito a si cair no chão. Não sentia dor física, mas mental, sentia por aquele tapa. 
- Moleque! Você é um moleque! Não merece ter ficado vivo todo esse tempo nessa igreja! Não se envergonha?!  Na casa de Deus!
O menor suspirou, sentindo o gosto amargo de sangue e da desilusão que havia criado para si mesmo.
- Não ficarei mais aqui. Estou indo embora.
Houve um momento de silêncio, antes que Asahi continuasse.
- Obrigado por tudo.
- Você não é digno de ter sido criado dentro desse lugar. Você é sujo, deveria ter expulsado você daqui assim que me fez aquelas perguntas estranhas sobre sua fé! 
O menor assentiu, e nada mais disse ao outro homem. Ao se virar, seguiu em direção a saída, passando no próprio quarto para pegar as próprias roupas que colocou em uma mala velha, não se esqueceu do quepe do outro, e antes de sair, deixou sobre a cama a roupa que antes usava, a batina, e a pequena caixa de lâminas. Seguiu para a porta, não sem antes fitar bem aquele quarto, no qual havia passado os dias de frio ao lado dele, no qual o havia tido pela primeira vez, e fechou a porta, seguindo pelo corredor a descer as escadas e finalmente, sair pela porta da frente.
Não haviam mais soldados, estava vazio, ninguém mais fazia a segurança da igreja, e por um momento, pôde jurar que ouviu o canto de dois pássaros que passavam perto do local, há anos não ouvia nenhum animal. Sentiu a luz forte do dia incomodar os olhos, e por fim, seguiu os passos para o muro da igreja, empurrando o grande portão por onde saiu e fitou os destroços ali deixados pela guerra que havia ocorrido, teria um caminho meio longo a tomar até a base dele. Silencioso seguiu por toda aquela estrada, passo por passo pensando nas decisões que havia tomado, sair da igreja, não era mais um padre, poderia muito bem ficar ao lado dele, se ele aceitasse a si, podia ter filhos com ele, podia... Podia se casar com ele. Sorria consigo mesmo, quando por fim cessou os passos ao virar a estrada. A base que ficava depois das árvores havia sido completamente desmontada, não havia mais nada ali, mais nada, nem ninguém.

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